Há muito que o ato de decorar uma casa deixou de ser apenas uma expressão pessoal ou funcional. Decorar uma casa tornou-se sinónimo de obedecer a regras — de simetria, de harmonia, de bom gosto validado por catálogos e, mais recentemente, por redes sociais. A ideia de que a casa perfeita é aquela digna de uma publicação "Instagramável" impôs uma estética universal: neutra, minimalista, impessoal. Estará assim a casa moderna a perder a sua voz própria em nome de um ideal decorativo uniforme? Revelamos a visão dos especialistas.

Numa espécie de tirania social da decoração silenciosa, decorar passou a ser também uma forma de performance — não apenas estética, mas social. A casa, esse refúgio íntimo e espaço de identidade própria, acaba assim a transformar-se num palco, uma realidade artificial que dá lugar a ambientes que, muitas vezes, não dizem nada sobre quem lá vive. É o reinado da estética a prevalecer sobre a vivência, e os interiores a deixarem de refletir quem os habita para projetar uma imagem socialmente aceitável. 

Esta nova era da exposição está a uniformizar a forma como olhamos para os interiores. Tons neutros, minimalismo calculado, candeeiros suspensos como esculturas e divisões que parecem tiradas de um catálogo nórdico. Mas será que tudo isto faz sentido quando falamos de espaços destinados a viver e a sentir, e não apenas a ser fotografados?

O idealista/news conversou com várias profissionais da área da decoração e do design de interiores que, diariamente, enfrentam esta realidade e procuram romper com esta rigidez estética. Ana Borges (Ana Borges Interiores), Ana Pinto (La Nena), a dupla Ana Proença e Célia Mestre (Spacemakers) e Margarida Diniz (Staging Factory) apresentam uma visão abrangente e, acima de tudo, profundamente humana da casa como um espaço vivo — repleto de identidade, memórias, cor e imperfeição.

Em comum, todas apontam o dedo à pressão das redes sociais e ao medo de errar como os grandes catalisadores desta nova homogeneização dos interiores. Mas esse paradigma começa a ser desafiado por um movimento que valoriza a autenticidade, a memória e o conforto real acima da aparência. Numa era de algoritmos e tendências globais, talvez o maior luxo seja mesmo ter uma casa que se pareça connosco, e seja uma soma de vivências pessoais — e não com todos os outros.

decorar a casa
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A estética do "Instagramável": quando o olhar do outro pesa mais

As redes sociais moldaram a perceção do que é "bonito" ou "desejável" numa casa. Ana Proença e Célia Mestre notam que muitos projetos hoje são pensados “para a fotografia”, ignorando o conforto, a funcionalidade e, acima de tudo, a identidade de quem os habita. “Nos últimos anos, o Instagram e o Pinterest transformaram-se em verdadeiros manuais de tendências, e há quem caia na tentação de projetar a casa não apenas para ser vivida, mas para impressionar. Muitos espaços são desenhados com uma estética perfeita para a fotografia, repletos de cores trendy ou, pelo inverso, um minimalismo exagerado, peças de design icónicas e cenários “instagramáveis”, com o propósito de alcançar um feed fotogénico”, começam por dizer.

Esta estetização extrema gera ambientes visualmente impecáveis, mas emocionalmente frios. Para as fundadoras da Spacemakers, o papel do design deve ser outro: resistir ao tempo, respeitar a individualidade e valorizar a experiência da vivência sobre a aparência. “Estas escolhas muitas vezes ignoram o conforto, a funcionalidade e, acima de tudo, a identidade de quem habita os espaços”, defendem.

A ditadura da tendência esconde-se até nas decisões mais inocentes. “Vivemos numa era em que estamos mais preocupados com o que os outros vão ver do que com o que nós próprios vamos ver e viver, quer em relação a espaços, quer a momentos. Estamos a competir pela viagem mais longe, o maior casamento ou a casa mais incrível”, lamenta Ana Pinto. “Quase nunca o cliente sabe responder quando lhe pergunto qual o último sítio que visitou em que realmente se sentiu bem. Isto porque acaba por estar mais atento ao que está a acontecer na página da influencer A ou B do que no espaço envolvente”, refere. 

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Ana Borges acrescenta a esta equação um outro elemento importante, as marcas, que hoje em dia “criam narrativas à volta dos seus produtos de modo a criar uma necessidade e um conceito que gera proximidade e identificação, que faz com que as pessoas comprem a ideia e não o produto em si, que muitas vezes é visualmente apelativo, mas não tem utilidade na sua vida diária”. A fundadora da Ana Borges Interiores acredita que a tendência do "Instagramável" e das casas minimalistas acontece porque, “na procura por soluções seguras, muitas pessoas optam pelos mesmos materiais, combinações e composições que já viram funcionar”.

“Muitas vezes as pessoas são influenciadas pelas redes sociais e pela busca incessante pela perfeição mostrada por influencers ou marcas (que querem agradar a todos) Essas imagens acabam por criar padrões que não condizem com a realidade das pessoas. As casas, devem, antes de mais, refletir a alma e as vivências de quem as habita, pois são os espaços onde nos devemos sentir completos, e 'em casa'”, concorda Margarida Diniz, da Staging Factory.

Cromofobia: o medo de usar cores

Se a padronização estética já é um fenómeno preocupante, a chamada cromofobia — o receio de usar cor — reforça ainda mais essa neutralização dos espaços. “O medo de arriscar também tem um peso grande na hora de decidir sobre o tema da cor; optar pela utilização de cores vibrantes exige conhecimento e técnica, pois uma combinação errada pode tornar um espaço visualmente cansativo e pouco harmonioso”, Ana Proença e Célia Mestre. As decoradoras frisam, contudo, que as cores “podem influenciar o humor, estimular a criatividade e até melhorar a produtividade”. “Usar cor não significa transformar o espaço num universo desordenado, significa dar-lhe vida e expressar personalidade”, salientam. 

Margarida Diniz partilha da mesma opinião. A especialista acredita que o medo de usar cores “surge pela falta de experiência e pelo receio de cometer erros”. No entanto, recorda que, na decoração, como em outras áreas, é preciso arriscar. “Isto acontece na decoração como em qualquer outra área. Também é mais arriscado escolher cores vivas no vestuário por exemplo que manter uma paleta clara e uniforme. Onde não há ousadia, não há riscos”, defende.

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“A cor, quando utilizada no espaço, tem todo o poder de transformar de uma forma emocional o que nos é transmitido. Para alguém que tenha medo de arriscar diria para começar por uma peça de destaque, uma peça de arte, por exemplo, traz imensa vida e cor a um espaço, transformando-o completamente, diria para começar por aí”, sugere Ana Pinto. 

Ana Borges é da opinião que atravessámos no início do século uma era dominada por tons neutros e monocromáticos. “O receio vinha do medo de se cansar das cores ou do contraste com o estilo pop dos anos 2000”, diz a decoradora. No entanto, considera que hoje vivemos um renascimento do maximalismo, “marcada pelo uso de cores vibrantes, contrastes assumidos e escolhas visuais mais ousadas”.

“As cores carregam conotações e transmitem-nos diferentes tipos de energia, o que torna essencial refletir sobre onde e como são aplicadas. Todas as escolhas devem ser feitas com intenção, de acordo com o que se pretende sentir e comunicar no espaço. Para quem tem receio de exagerar, mas quer fugir ao minimalismo, uma boa solução é criar pontos de destaque: pintar uma parede, incluir uma ou duas peças de mobiliário com cor, ou recorrer a elementos decorativos como quadros, esculturas, plantas ou têxteis”, aconselha. 

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Texturas, luz e memórias: ingredientes de uma casa feliz

Mais do que cor, é também o jogo de texturas e a luz que podem transformar completamente um espaço. “O mesmo espaço pode ser completamente destruído apenas por não ter a iluminação certa”, afirma Ana Pinto. A escolha da luz, direta ou difusa, quente ou neutra, é crucial para criar atmosferas. As texturas, por sua vez, tornam os espaços neutros mais ricos e sensoriais. 

“A nossa casa é um processo em constante evolução, acho errada esta urgência que temos em crer que tudo seja montado na semana das mudanças e dar como terminada a decoração do espaço. É importante viver as zonas, perceber como encaixam os materiais, as cores, a luz, dar tempo”, salienta a responsável da La Nena.

Além disso, segundo as especialistas ouvidas, os objetos afetivos, herdados ou artesanais podem quebrar a ditadura do “perfeito” e trazer mais autenticidade a uma casa. Para Ana Proença e Célia Mestre, “peças que carregam memórias, histórias de família ou um toque artesanal criam uma ligação emocional com o espaço”. “Uma cadeira antiga que pertenceu aos avós, um tapete tecido à mão numa viagem especial ou uma cerâmica feita por um artista são mais do que elementos decorativos, são testemunhos de vivências, emoções e identidade”, sublinham.

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Ana Borges lembra que os “objetos colecionados ou adquiridos durante viagens, que evocam memórias afetivas ou contam uma história, têm um valor único — não só decoram, como criam uma ligação emocional com o espaço”. “São elementos que nos alegram no dia a dia e funcionam muitas vezes como ponto de partida para conversas com visitas e familiares. Mais do que decoração, tornam-se narrativas visuais”, defende. 

Os objetos herdados e artesanais carregam o peso de uma história quase sempre. E são essas memórias que devem ser trazidas para dentro de casa, segundo Margarida Diniz. “Uma casa cheia de peças com história não precisa seguir as tendências da moda. A mistura de estilos, com peças herdadas ou de segunda mão, é o que confere autenticidade, pois cada peça carrega consigo um valor emocional”, refere. 

Misturar com propósito: a harmonia do inesperado

A mistura de estilos, materiais e épocas pode parecer arriscada, mas é uma forma eficaz de criar ambientes com identidade. O segredo está em encontrar pontos de ligação — seja uma cor comum, uma repetição de textura, ou a escala das peças. “Definir um estilo predominante e trabalhar com proporções é essencial”, recomenda Ana Borges. 

Já Ana Pinto insiste: “O importante é testar. Temos esta ideia de que vamos a uma loja e compramos tudo para decorar a casa e já está, isso não faz sentido. Diria o contrário, é importante ver muitas coisas diferentes para conseguir criar ambientes ricos, misturar, arriscar e, acima de tudo, não ter medo”.

Uma visão partilhada pela decoradora da Staging Factory. “Costumo dizer que cada peça tem o seu lugar, e na minha casa, as peças e quadros vão mudando de lugar até encontrar o seu local perfeito. Não tenham pressa em completar a decoração de uma vez. As casas precisam de tempo e do nosso olhar atento para refletirem a nossa alma e a de quem as habita”, diz. 

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“Misturar estilos não significa simplesmente juntar peças, é um processo criativo que exige uma visão estratégica. Os princípios fundamentais passam por criar pontos de ligação; seja através de cores repetidas, texturas semelhantes ou um fio condutor que una as peças”, acrescentam as responsáveis da SpaceMakers.

Outra forma de devolver equilíbrio à casa passa pela reavaliação da disposição dos espaços. O Feng Shui, defendido por todas as decoradoras, propõe fluidez, integração com a envolvente e ausência de bloqueios visuais. E se mudar tudo parecer demasiado, pequenas remodelações podem ser transformadoras, desde um papel de parede, um painel decorativo, biombos, iluminação indireta, ou até um simples espelho bem colocado. Tudo pode mudar um espaço sem grandes custos, dizem. 

Se há um ponto comum entre todas as profissionais ouvidas, é este: libertar-se da pressão estética e decorar com significado. A decoração deve ser um exercício de escuta interior, não de performance social, até porque cada casa é um processo em constante evolução. E o conselho de todas é claro: arrisquem, sejam autênticos, e não tenham medo de misturar. 
Fonte:Decorar a casa sem medos: quebrar a tirania social do "perfeito" — idealista/news