Nos últimos 7 anos, assistiu-se a um “boom” de intermediários de crédito (habitação) em Portugal, coincidindo com a chegada da regulamentação do setor. Agora, o Banco de Portugal (BdP) quer rever a legislação que regula a intermediação de crédito, por via da simplificação de regras e da criação de requisitos de acesso à atividade. Esta iniciativa do supervisor bancário é vista com bons olhos por Tiago Vilaça, presidente da Associação Nacional de Intermediários de Crédito Autorizados (ANICA): “A intermediação de crédito cresceu, de facto, de forma massiva (…), pelo que é urgente começarmos também a trazer algumas regras, nomeadamente a nível de formação obrigatória”, admite em entrevista ao idealista/news.

O reforço da formação dos intermediários de crédito é um dos pontos que Tiago Vilaça quer levar para a revisão do Regime Jurídico dos Intermediários de Crédito (RJIC), um processo em que a ANICA está a “participar de forma ativa”. Na sua perspetiva, “é normal que o RJIC, com quase 10 anos, tenha de ser revisto, porque o mundo é tão dinâmico e tudo acontece com uma rapidez tão grande, que temos de ter a capacidade de adaptar a legislação à realidade”.

"Hoje, a intermediação de crédito tem livre acesso por qualquer pessoa que queira ser intermediário de crédito. E ficamos por aqui quanto à formação inicial"

E, na sua opinião, não é só o regime que regula a atividade de intermediação de crédito que merece mudanças. O responsável também vê “algumas limitações” nos novos apoios públicos destinados aos jovens, pelo que sugere nesta entrevista ao idealista/news alguns ajustes quer na isenção de IMT quer na garantia pública, nomeadamente quanto aos limites de idade e ao momento em que se pode ter acesso ao capital para dar entrada no crédito habitação.

Antes de comprar casa, as famílias devem primeiro “compreender qual é a sua capacidade de endividamento” para conseguir balizar o valor das casas e o esforço que podem adquirir, aconselha Tiago Vilaça. E recomenda também que haja atenção às ofertas de crédito habitação a taxa mista, sobretudo com fixação da prestação da casa entre 3 e 5 anos. Até porque, no atual contexto macroeconómico e financeiro, a banca deverá “continuar a trabalhar numa componente fixa e mista”, que dá segurança em momentos de incerteza como o que vivemos hoje, avança o presidente da ANICA nesta entrevista.

Crédito habitação em Portugal
Freepik

Como avalia a evolução de intermediários de crédito (IC) em Portugal? Qual é a sua quota de mercado no crédito habitação?

Começo por distinguir as três vertentes da intermediação de crédito em Portugal. Há os intermediários de crédito vinculados e os não vinculados, sendo que só estes podem trabalhar o crédito habitação. E temos também os intermediários de crédito a título acessório, que estão normalmente em pontos de venda de produtos e serviços. No geral, dos cerca de 6.000 intermediários de crédito inscritos no Banco de Portugal, cerca de 60% são a título acessório e não podem fazer crédito habitação. Então, ficamos com 40% de profissionais de intermediação de crédito que estão a fazer crédito habitação, sendo os vinculados a sua grande maioria. 

Houve um 'boom' de crescimento de intermediários de crédito nos últimos sete anos, depois da entrada em vigor do decreto-lei que regulamenta a atividade e da transposição da diretiva comunitária. Agora, temos cerca de 6.000 intermediários de crédito, um número que tende a estabilizar, começando a haver uma certa consolidação da profissão. O que se está a acontecer é uma clara especialização de profissionais nesta área de intermediação de crédito. Até porque acabamos por ser uma extensão, um braço dos bancos, trabalhando muito alinhados com a banca, sendo este um parceiro muito importante.

Com esta dinâmica de intermediários de crédito acabamos por trazer mais concorrência para o mercado, porque como profissionais liberais e independentes, também temos a necessidade de gerir uma carteira de interesses, de intenções e até de expectativas. Portanto, temos de acompanhar muito perto do que está a acontecer com o produto.

"A intermediação de crédito cresceu, de facto, de forma massiva (...), pelo que é urgente começarmos a trazer algumas regras, nomeadamente a nível de formação obrigatória"

Como avalia as novas regras do Banco de Portugal (BdP) sobre a publicidade dos intermediários de crédito? A ANICA tem estado envolvida neste processo?

A ANICA participou antes, durante e agora na íntegra com a entrada em vigor desta alteração. Já tínhamos vindo a falar com o Banco de Portugal sobre o facto de a publicidade precisar de uma clarificação. Portanto, vemos com bons olhos esta alteração. Vem separar claramente o que é publicidade institucional sobre uma empresa que faz a intermediação de crédito, daquilo que é uma publicidade sobre produtos que o IC está autorizado a distribuir e sobre a sua atividade. Até aqui a publicidade não tinha regras uniformes, não estava separada por estas três vertentes, não estando adaptada às necessidades atuais, nomeadamente ao canal digital. Estas alterações vêm ajudar muito as regras da publicidade dos agentes e também ficamos muito satisfeitos por podermos ter uma intervenção ativa e ajudar a chegar a este ponto. 

Regras nos intermediários de crédito
Mário Centeno, governador do Banco de PortugalGetty images

O Banco de Portugal tem em curso a revisão do Regime Jurídico dos Intermediários de Crédito (RJIC) de 2017. O que é que poderá mudar? 

Teremos de esperar um pouco mais até podermos começar a tecer qualquer tipo de comentário, porque o processo está em estudo, está em reflexão interna junto do regulador. Estamos a participar de forma ativa, trazendo a visão do mercado e abordando os temas que mais nos preocupam. 

intermediação de crédito cresceu, de facto, de forma massiva ou extraordinária, pelo que é urgente começarmos a também trazer algumas regras, nomeadamente a nível de formação obrigatória. Hoje em dia, a intermediação de crédito tem livre acesso por qualquer pessoa que queira ser intermediário de crédito. E ficamos por aqui quanto à formação inicial. Não existe, depois, uma renovação ou uma reciclagem de conhecimentos. Numa atividade que é tão exigente, onde se pretende que o consumidor tenha acesso a uma informação mais transparente e cuidada, acho que este tema é essencial e temos de o trazer para esta atualização do RJIC. Por outro lado, é normal que o RJIC, com quase 10 anos, tenha de ser revisto, porque o mundo é tão dinâmico e tudo acontece com uma rapidez tão grande, que temos de ter a capacidade de adaptar a legislação à realidade.

"A garantia pública não está a conseguir acautelar aquilo que são as fases de um processo de compra de casa"

Qual é a sua opinião sobre as novas medidas destinadas aos jovens para comprar casa (isenção de IMT e garantia pública)? Quais as suas vantagens e riscos para o mercado?

O Governo tem este poder de influenciar o mercado, de alguma maneira. Quanto à isenção de IMT e Imposto de Selo para jovens, achamos que a lei podia ter sido mais ambiciosa, porque temos algumas limitações, nomeadamente na idade até aos 35 anos. Na verdade, podemos ter um jovem casal, um com 34 anos e outro com 36 anos. Portanto, seria preferível que se fosse utilizada uma idade média, talvez ajudasse mais, fosse mais justo e equitativo.

Por outro lado, a garantia pública não está a conseguir acautelar aquilo que são as fases de um processo de compra de casa, onde existe inicialmente um contrato-promessa com entrega de um montante em numerário e, depois, há a escritura onde entra a garantia do Estado. Portanto, nem todos os bancos estão a financiar esta entrada intercalar de dinheiro para o contrato-promessa, o que obriga os jovens a terem recursos próprios - que muitas vezes não têm – ou a recorrer a amigos e familiares, que depois não conseguem financiar. Há aqui ajustamentos nesta medida que achamos que deveriam ser feitos. Mas é inequívoco que foi uma medida positiva e que ajudou a que houvesse mais recurso a crédito para a compra de casa por parte de jovens. Temos de ter algum cuidado para que não se torne uma medida especulativa de aumento dos preços das casas, porque obviamente o mercado tem uma forma muito própria de funcionar e que aí também tem de haver uma mão mais dura do ponto de vista de acompanhamento dos agentes.

Garantia no crédito habitação jovem
Freepik

Porque é que as famílias têm recorrido sobretudo à taxa mista no crédito habitação? E como é que está a influenciar renegociações e transferências de crédito?

Temo que as famílias não procurem aquilo que é a essência de uma taxa mista, que é uma certa previsibilidade e segurança, mantendo a prestação fixa durante algum tempo. Isto é importante numa altura em que vivemos um contexto internacional que não é propriamente estável, não sabemos se vamos ter, de repente, novamente um problema de inflação e subida das taxas Euribor.

O mercado das transferências foi muito dinâmico na alteração do mercado indexado [taxa variável] para taxa mista, porque a taxa fixa tem vindo a diminuir, o que traz num primeiro momento uma redução efetiva do valor da prestação da casa. Estamos agora com taxas fixas, no regime de taxa mista, a rondar os 2,5%. E no mercado indexado, somando a Euribor a um excelente spread (0,6% ou 0,65%), os juros já são superiores a 3%. Por isso é que há uma tendência natural de as famílias irem atrás da taxa mista. Mas fixar as taxas por 2 ou 3 anos é um período relativamente curto. Aquilo que aconselhamos é que a taxa fixa deve andar entre 3 e 5 anos, permitindo ter prestações estáveis nesse período.

Em Portugal, temos taxas fixas relativamente altas face a outros países, porque não temos ainda uma carteira de crédito de taxa fixa suficiente que nos permita ser mais competitivos. Mas está a ser criada, tendo vindo a aumentar gradualmente, o que é um fator positivo. Se olharmos para as taxas forward e os swaps que são anunciados nos mercados, prevê-se uma redução da taxa fixa até ao final de 2025. Mas também, por outro lado, verifica-se que a seguir vai haver um crescimento gradual da taxa de juro e que até 2030-2033 pode atingir mais de 3% - isto sem nenhum impacto externo, como já tivemos no passado.

"Acredito que se vai continuar a trabalhar numa componente fixa e mista"

Com a descida dos juros, os bancos têm vindo a diversificar as suas ofertas de empréstimos da casa. Vai continuar a assistir-se a esta tendência? Que rumo tomará? Porquê?

Acredito que sim. A banca soube dar uma resposta muito positiva quando as taxas de juro subiram criando ferramentas para taxa mista e fixa. Considero que a banca percebeu que Portugal estava muito exposto: na altura em que saímos do período da Euribor negativa, tínhamos mais de 90% de crédito habitação a taxa variável, o que não é equilibrado nem traz estabilidade ao setor. Por isso, acredito que se vai continuar a trabalhar numa componente fixa e mista. E acho que as pessoas devem estar muito atentas esse fenómeno. 

processo de transferência do crédito habitação tornou-se muito dinâmico e vejo isso de uma forma positiva. Portanto, conseguimos verificar que isso obriga a que os bancos se tornassem mais competitivos, com mais oferta e que, de alguma forma, também dessem resposta de forma agregada. E é bom que continuemos com esta dinâmica, porque vai continuar a existir do lado dos bancos uma adaptação ou, pelo menos, não ficam numa zona de conforto.

Intermediários de crédito em Portugal
Freepik

Como é que as famílias podem garantir que recorrem a intermediários de crédito autorizados?

Primeiro, todos os intermediários de crédito são obrigados a ter um registo e esse registo é público e pode ser consultado no website do Banco de Portugal. Aí vai aparecer aquilo que é a ficha do profissional de intermediação de crédito, que mostra quem é a pessoa responsável, que bancos é que está autorizado a representar, se tem um seguro de responsabilidade civil válido, portanto, tem um conjunto de informações que permite perceber se estamos a lidar com um IC devidamente autorizado.

O regulador tem sido muito interventivo neste tema, mas tem de haver de denúncias de casos em concreto. Vai haver sempre IC não autorizados, sendo algo que se tem de proteger de alguma maneira através do regulador. O que defendemos na ANICA é que o próprio intermediário de crédito também deve ter uma plataforma atualizada onde comunique que bancos é que pode trabalhar, que produtos pode distribuir e até casos de sucesso, para que as pessoas saibam que estão a lidar com um profissional devidamente autorizado.

"O primeiro conselho que dou é que, antes de procurar a casa, consigam compreender qual é a sua capacidade de endividamento"

O que diria às famílias que procuram crédito para financiar a compra de casa no atual momento de incerteza? 

O primeiro conselho que dou é que, antes de procurar a casa, consigam compreender qual é a sua capacidade de endividamento. Isto é basilar, porque senão as pessoas podem ficar defraudadas, porque podem ver a casa dos seus sonhos, começam a idealizar e a criar uma expectativa e, de repente, o banco não autoriza a proposta. Os bancos e os intermediários de crédito estão preparados para avaliar um conjunto de informações do agregado familiar que está a recorrer ao crédito habitação, e conseguem balizar montantes para compra da casa. Isso permite que uma família vá a um mediador imobiliário procurar uma casa de forma mais personalizada, não trazendo dissabores para o futuro. Isto é um conselho de ouro.

Na prática, vai funcionar muito bem para todos os agentes, porque também existe um conjunto de propostas que não são aprovadas ou que são aprovadas, mas depois não para aquele imóvel específico (que pode ter um valor superior). Há também problemas de avaliação no enquadramento com a aprovação no rácio entre o crédito concedido e o valor do imóvel. Portanto, diria para se fazer ao contrário. Uma casa começa pelo pelas fundações e não pelo telhado. E temos de primeiro perceber até onde é que podemos ir. Aqui um intermediário de crédito é alguém que pode ajudar imenso e que faz esse trabalho que o banco sozinho não vai fazer, obviamente, pelo menos aquilo que é a relação comercial. E nós intermediários de crédito estamos mais preparados, conseguimos ajudar as pessoas a compreenderem qual é a sua capacidade de endividamento e a fazer uma pesquisa mais enquadrada.

fonte: Intermediários de crédito (habitação): “É urgente trazer regras na formação” — idealista/news